sexta-feira, 22 de julho de 2011

"Crimea", Orlando Figes

É famoso o praguejar do Capitão Haddock, popular personagem de Hergé. Entre as expressões que utiliza estão Bashi Bazouks e Zouaves. Para o leitor de hoje das Aventuras de Tintin são expressões cómicas e enigmáticas mas para o leitor das aventuras á data em que foram publicadas elas eram facilmente identificáveis e reportavam a personagens de um passado recente da Guerra da Crimeia.
Ela é, para o mundo de hoje, uma guerra algures num passado longínquo, difícil de colocar num mapa e de objectivos misteriosos.
Para alguns autores – Karl Polanyi, por exemplo- a Guerra da Crimeia terá sido um acontecimento mais ou menos colonial.
Orlando Figes, sólido historiador, dá-nos agora “Crimea e diz-nos que ela foi muito mais do que isso. A juntar á extensa bibliografia inglesa e francesa – uma outra obra interessante é “La guerre de Crimée”, Alain Gouttman, Tempus – o tema, Figes acede a novas fontes russas, francesas, inglesas e otomanas para dar nova luz ás razões religiosas, políticas, económicas e culturais que determinaram o envolvimento das diversas nações na guerra.
A Guerra da Crimeia – Vostochnaia voina, a Guerra do Levante, como a chamam os russos – foi para os nossos antepassados do século XIX o maior e o mais marcante conflito das suas vidas. Foi uma imensa matança de resultados irrisórios. Sendo impossível contabilizar as vítimas civis, só as militares causadas pelos combates ou pelos ferimentos e doenças  foram mais de 750 000.
Foi a primeira guerra da eram moderna, com novas armas, novas tecnologias, novos meios de transporte e de logística. Foi o campo de ensaio para a guerra de trincheiras da 1ª Guerra Mundial e aquela em que, pela primeira vez, a  imprensa e a opinião intervieram directamente no conflito
Teve os seus heróis e os seus mitos como foi a “Carga da Brigada Ligeira”, consagrada no poema de Tennyson e a “Senhora da Lanterna”, Florence Nightingale.
Nos capítulos iniciais, Orlando Figes dá um panorama da situação política nos diversos países, as suas teias de relações de interesses e a personalidade dos seus principais personagens.
O ponto de partida foi a questão da Terra Santa: católicos e latinos (apoiados pela França) enfrentavam os gregos ortodoxos (apoiados pela Rússia) para decidir quem teria o controlo da Igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém e da Igreja da Natividade, em Belém. E é neste capítulos iniciais que é desenvolvida a tese, ignorada ou menorizada por muitos autores, da importância da questão religiosa no século XIX e como esta era sempre permanente na Questão do Levante. São capítulos de análise lúcida e convincente.
O estilo a que Orlando de Figes nos habituou em obras anteriores surge em pleno com a descrição do início da guerra e dos combates. Do nevoeiro do passado dos diários dos soldados, das cartas pessoais e dos relatórios militares, surgem as vozes pessoais dos diversos participantes no conflito.
Falam das tragédias da vida diária, dos mortos e feridos, da imensa carnagem, das condições abomináveis para apoio aos feridos, das arrogância e dos erros dos comandos. Ouvimos as vozes das opiniões públicas russas, inglesas e otomanas quando recebiam as notícias dos combates, da inacção da guerra de trincheiras e as listas com os milhares de mortes. Lá nos aparecem os Bashi Bazouks e os Zuoaves.
Os relatos dos combates naquela longínqua parte do mundo chegavam poucas horas ou dias depois de terem acontecido fazendo evoluir com rapidez a opinião pública e as acções dos dirigentes políticos.
Terminados os combates, declarado o cessar-fogo, assinaram-se os tratados para definir as partilhas dos despojos da guerra que poucas alterações provocaram no mapa da Europa.
Os excelentes capítulos finais mostram como se organizaram as relações internacionais no pós-guerra e como o caminho ficou aberto para os novos campos de morte num novo matadouro europeu.
Salientam-se as imensas emigrações forçadas e o desenraizamento de grupos étnicos e religiosos. Foram, desde logo, os tártaros na Crimeia mas também os gregos, os polacos, os cristãos arménios, os circassianos, os abkhazes e outros grupos muçulmanos.
Sobre um império otomano fraco saltaram franceses e inglesas impondo os seus mercados, os seus produtos e sua maneira de vida. A abertura ás ideias do ocidente pelo império otomano gerou conflitos por toda a região  que ainda hoje assistimos.
O ressentimento russo contra o ocidente assenta neste período as suas raízes e na Rússia de Putin são hoje recuperados muitos dos personagens de então.
Excelente análise histórica com um estilo atraente esta “Crimea”

Crimea
Orlando Figes
Penguin Books
2004
Pag. 575
ISBN 9780141013503

Sem comentários:

Enviar um comentário