Pela primeira vez arrisquei ler um livro de um autor que
desconhecia através de uma sua obra póstuma. Sempre entendi que, ou o autor a tinha
plenamente acabada, ou se ela era criada pelos papéis, notas ou rascunhos
deixados, era uma obra de outros e não dele.
De David Foster Wallace nunca tinha lido nada. Sabia do mito
em que se tinha tornado o homem após o seu suícidio em 2008 e da inclusão do
seu “Infinit Jest” na lista das obras míticas, muito pouco lidas mas
imensamente faladas.
“The Pale King” é a sua obra póstuma. Após a sua morte, o seu
agente Bonnie Nadell recolheu de sua casa 200 páginas arranjadinhas que estavam
em cima da sua secretária. Michael Pietsch, da editora Little Brown & Co. que
trabalhava com Wallace recolheu outras folhas perdidas em gavetas e cestos de
papéis. Durante 2 anos dedicou-se á tarefa de organizar este “The Pale King”.
Um conjunto de personagens converge no IRS – Regional Examination
Center em Pioria, Illinois. É no ambiente alienado do sistema fiscal americano
que vamos conhecendo o passado destes personagens, neófitos no sistema, bem como
o dos seus chefes, integrados no serviço há vários anos. É através de capítulos
com estilos literários diferentes, em épocas temporais diferentes, que vamos
criando a imagem deste sistema fiscal que é um mundo dentro do mundo em que
vivemos. Um mundo sufocante, imensamente aborrecido para o qual somos
arrastados pelas discussões internas que aí se sucedem numa linguagem esotérica
com o seu calão próprio.
O que levou as personagens a entrar neste mundo? O que
motivou David Wallace, nome verdadeiro do autor, que aí também trabalhou? Com
as personagens estamos deitados em sofás freudianos até ao momento da sua
chegada ao IRS. Salas e salas com secretárias, luzes de fluorescentes, apinhadas
de montanhas de declarações fiscais, dia após dia. Do ambiente fordista da fábrica
para o mundo alienado do colarinho branco. Recordamos Loyola Brandão no seu “Não
conhecerá país nenhum”, onde o ex-professor universitário Souza conferia listas
intermináveis de números emitidas por computadores. O aborrecimento é o senhor
do romance, o seu personagem principal. “Pale King” é um romance sobre o
ambiente. O ambiente substitui o enredo
Nos anos 80, o romance situa-se em 1985, o IRS americano vai
enfrentar as mudanças impostas pelas políticas neo-liberais dos anos Reagan,
dos cortes para permitir diminuição dos impostos, a privatização dos serviços públicos
e as modificações impostas pela informatização dos serviços. A substituição da
folha escrita pelo cartão perfurado. No interior extremam-se os campos, as
chefias procuram impor os seus pontos de vista aos recém- chegados.
“Big Q is whether IRS
is to be essencially a corporate entity or a moral one”, diz Wallace nos
seus apontamentos. Aquele mundo, por muito aborrecido que fosse, cumpria o seu
serviço de redistribuição da riqueza na sociedade.
“The birth agonies of
the New IRS led to one of the great and terrible PR discoveries in modern
democraciy, which is that if sensitive issues of governance can be made
sufficiente dull and arcane, there will be no need for officials to hide or
disassemble, because no one not directly involved will pay enough attention to cause
trouble.”
O aborrecimento é o meio e a mensagem. Porque que é nos
retraímos perante o aborrecimento? “…because
dullness is intrinsically painfull.” E numa sociedade em que o
aborrecimento atravessa o nosso dia-a-dia, nos transportes, na alienação do
trabalho e das relações sociais, “ nas Tvs nas salas de espera, nas bichas dos
supermercados, nos aeroportos, nos bancos traseiros dos SUVs. Walkemen, iPods,
Blackberries, telemóveis que ligamos ás nossas cabeças. Este terror do silêncio.”
É cristalino quando diz “
I can’t think anyone really believes that today so-called ‘information society’
is just about information. Everyone knows is something else, way down.”
Fredrick Blumquist, de 53 anos, funcionário há 30 anos, no
IRS de Lake James, morreu de um ataque de coração, sentado á sua secretária, na
sala que compartilhava com outros vinte e cinco colegas. Foi a uma terça-feira.
Só foi encontrado no sábado á noite por um empregado de limpeza que estranhou vê-lo
a trabalhar á secretária com a luz apagada. Este é o capítulo estruturante do
romance.
“The Pale King” é ainda uma história sobre a incapacidade de
comunicação: dos novos funcionários ao longo da sua vida, das chefias com os recém-chegados,
dos homens no seu relacionamento com as mulheres. São opressivos os capítulos
que recolhem estes diálogos.
Por ser uma obra póstuma abordei a leitura como se o romance
fosse um livro de contos. Creio ter sido a melhor abordagem. Alguns absolutamente
maravilhosos, com uma escrita lindíssima, outros tão desesperantemente
aborrecidos que exigia quase um violento esforço físico para os concluir. Um
dia um, noutro dia outro, até a atmosfera e a intenção do romance se ir
tornando cristalina. Uma aventura fascinante.
“The truth will set
you free. But not until it is finished with you.”
David
Foster Wallace
Título: The Pale King
Autor: David Foster Wallace
Editor: Little Brown and Company
Pags. 548
ISBN: 9780316178327
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